As relações familiares são movidas por uma troca de afeto mútuo entre pais e filhos.
Esse afeto, muitas vezes, é manifestado pelos pais ao dar presentes aos filhos, como uma forma de ajudar ou apenas para agraciar seus descendentes.
Esses presentes podem ser um imóvel, para ajudar o filho que acabou de se casar, uma soma de dinheiro, para abrir uma empresa, ou um carro, para o filho calouro que acabou de passar na faculdade.
Esses presentes, em verdade, caracterizam doações, vale dizer, contratos que se revestem de consequências jurídicas muito importantes.
A primeira observação que se faz é que doações de pais para filhos configuram antecipação de herança.
Portanto, esses presentes não são, perante a lei, uma simples entrega definitiva de bem para os descendentes.
A lei estabelece que o filho que recebe um bem doado de seus pais deverá, quando da morte destes, devolver para a herança. Essa devolução se chama “colação”.
E qual o motivo dessa determinação legal?
O motivo é que os herdeiros têm direito a receber, de forma igual, todos bens que os pais tinham quando vivos.
A lei não permite, a princípio, que um filho-herdeiro tenha mais bens que o outro. É o princípio da igualdade entre os herdeiros.
Fiz menção, no parágrafo anterior, à expressão “a princípio”. Isso quer dizer que existe a possibilidade de uma doação feita pelos pais a um dos filhos se tornar definitiva, sem ter a necessidade de devolver para a futura herança?
Sim. Há previsão legal que autoriza a doação definitiva de pais para filhos.
Como a doação se torna definitiva? Por meio da cláusula chamada “dispensa de colação”.
As doações, no geral, devem ser feitas por escritura pública ou por instrumento particular (somente as doações sobre bens móveis e de pequeno valor, e com a entrega imediata ao donatário, se dispensa a forma pública ou particular).
Assim, no documento, deve ser incluída a cláusula de dispensa de colação. Com isso, o filho recebe o bem de seus pais em definitivo, tornando-se proprietário incontestável. O filho agraciado com o bem não precisará devolver à herança quando do falecimento dos pais.
Porém, uma dúvida surge: os pais podem doar todos os seus bens aos filhos, da maneira que entenderem melhor?
A dispensa de colação está sujeita a restrições.
A mais importante se refere à legítima.
Já mencionamos nos nossos artigos anteriores o que vem a ser a legítima.
A lei reserva para os herdeiros classificados como “necessários” 50% do patrimônio do falecido. Os filhos são herdeiros necessários.
Isso significa que uma pessoa somente pode fazer o que quiser (doar, deixar em testamento) com 50% de seu patrimônio. Os outros 50% ficam reservados para os herdeiros necessários.
Se o pai quiser fazer doações aos filhos, somente poderia em relação a 50% de seu acervo patrimonial.
Portanto, essa reserva de 50% para os herdeiros necessários se chama “legítima”.
Por exemplo, havendo dois filhos, cada um deles terá direito a, no mínimo, 25% do patrimônio dos pais, já que estes podem dispor dos outros 50%. Se os genitores doarem 50% de seu patrimônio a um dos filhos, este terá, no total, 75% dos bens.
Existe a figura da “partilha em vida”, mas é assunto para outro artigo. Em princípio, aplicam-se as regras descritas acima.
Como saber se a doação não ultrapassa a legítima, e, portanto, não ficará sujeita à colação-redução da doação, mesmo com a cláusula de dispensa?
Em tese, é simples. Deve se comparar o valor da doação em face do patrimônio líquido total do doador na época em que fora realizada a doação. É o valor que constará na escritura pública ou no instrumento particular.
E se no momento do falecimento dos pais, estes deixaram um patrimônio de herança inferior ao valor do bem doado anos antes?
Não importa. A doação é válida se na época desse ato o bem tinha valor igual ou inferior a 50% da parte disponível dos pais.
E se forem feitas diversas doações, em épocas diferentes, para determinado filho, como se saberá se as doações não violam a legítima?
Todas as doações serão contabilizadas para confrontá-las com o patrimônio dos pais-doadores existente na época da última doação.
Por exemplo, se o pai doou um apartamento de cem mil ao filho, o genitor terá de ter um patrimônio restante de cem mil também; Se, três anos depois, faz nova doação de outro apartamento, no valor de cem mil, o pai deve ter um patrimônio líquido de duzentos mil reais para que a cláusula de dispensa de colação da segunda doação produza plenos efeitos.
Outra questão interessante: Os pais podem descobrir a existência dessa cláusula somente depois de feita a doação. É possível que a cláusula de dispensa de colação seja feita em documento separado, posterior ao ato da doação?
A lei prevê a dispensa de colação pós-doação em testamento. Ou seja, é possível que o pai faça a doação ao filho, e, anos depois, ao decidir fazer um testamento, inclua a dispensa de colação nesse instrumento. Aqui, a cláusula produzirá efeitos somente quando do falecimento do pai, o que, contudo, não retira o caráter definitivo da doação. Somente haverá uma separação no tempo entre a doação e a cláusula.
Porém, a lei nada prevê sobre a dispensa de colação feita pelo pai em escritura pública ou instrumento particular depois de feita a doação, produzindo efeitos desde logo.
Os estudiosos sobre o tema entendem que sim, pois, se pode ser feita a dispensa em testamento, poderia ser feita também para produzir efeitos em vida. Essa dispensa em ato posterior à doação será válida desde que respeitada a legítima. O cálculo da parte disponível e o respeito à legítima se faz no ato da dispensa da colação, e não da doação feita anos antes.
Portanto, os pais que pretendem fazer doações aos filhos devem sempre se atentar para a inclusão da cláusula de dispensa de colação, a fim de conferir aos seus descendentes uma situação estável em relação ao bem que doaram, estando imune a futuras discussões em inventário.
Daniela Trezza
OAB/SP 249140